A virada do século XX se aproximava e muitos artistas estavam buscando se reposicionar no mercado fonográfico. O Rock e o Metal estavam ressurgindo de um “esquecimento” frente a outros estilos (muitos deles nojentos) e estava dada a chance dessa renovação. Doro Pesch não estava nada bem com relação aos seus últimos trabalhos, tendo se arriscado em outros ares, porém sem o devido êxito. Estava na hora de ressuscitar aquele espírito contido em álbuns como “Force Majeure”, “Doro” e “True At Heart”. E foi exatamente isso o que aconteceu. De um modo equilibrado com direito a uma excelente e surpreendente participação de Lemmy Kilmister, super amigo da Metal Queen. Não que “Calling The Wild” pudesse alcançar a alcunha de clássico, mas o trabalho tinha chance de render e vender bem mais do que a realidade. Não havia como atingir o mesmo ápice como fora nos tempos de Warlock, mas a cantora jamais desistiu e nesse álbum ela mostrou definitivamente que estava longe do fim de sua carreira que segue firme até os dias atuais.
Doro reuniu todas as suas forças em um trabalho que poderia colocar ela de volta na mira das grandes turnês, unindo-se também aos grandes nomes do Metal tanto da atualidade quanto de sua própria época. “Calling The Wild” se tornou um marco na carreira de Doro por trazer a cantora de volta ao mapa principal da música, lhe rendendo uma ótima turnê com nada mais nada menos que Ronnie James Dio nos EUA. O disco ganhou sua versão americana em parceria com a gravadora Koch Records, porém a obra acabou por ter tracklist e capa diferentes da versão europeia lançada pela SPV/Steamhammer. Após a promoção e distribuição insatisfatórias do álbum anterior, “Love Me In Black” via WEA, Doro precisava e decidiu rumar para novos ares, ou ares mais tradicionais, como queira. Como a versão de “Calling The Wild” que tenho comigo é a europeia, vamos focar apenas nela. Ajeite a cabeleira e vamos relembrar os novos ares vividos por Doro em tempos de dúvida sobre o que planejar para a sua carreira musical. Lembrando ao leitor que o disco em questão passou pelas mãos de vários produtores, incluindo a própria Metal Queen, na qual participou da produção de seis canções do álbum. A lista com todas as figuras, contando além da produção, também mixagem, masterização e gravação, estará disponível ao término de nossa viagem sonora ao som de Doro Pesch e seu “chamado selvagem”.

Os três primeiros chamados atendem por “Kiss Me Like A Cobra”, “Dedication (I Give My Blood)” e “Burn It Up”, e pelos títulos das mesmas traz certa ligação, formando um tridente a ponto de fincar e atravessar o abdômen do inimigo. A primeira ao clamar por um beijo selvagem, mostra uma levada voltada para os contestados anos 90, que com um refrão cativante, conquista até mesmo que não compactue com guitarras distorcidas, acordes com intervalos e baixo cravando sua presença nos momentos propícios. Doro mostra sua versatilidade vocálica logo aos primeiros minutos de jogo junto a uma canção mais simples em questão de base, mas com muitos efeitos, hammer on, alavancas incandescentes, solos que brincam até mesmo no refrão e uma bateria segura. Flertando com o lado Industrial da coisa, o segundo passo é dado e Doro traz mais agressividade à sua voz, como de costume. Literalmente a donzela dourada entrega seu sangue e enriquece mais uma canção que possui mais acordes em suas bases, além de baixo, bateria e solos precisos. A emenda traz aquela sensação boa de se estar em um show da eterna líder do todo poderoso Warlock. Refrão energético, riffs que levam o nível para o alto e aquele famoso “ôôô” em coro para alegria geral. Nessa terceira etapa as épocas se juntam e o ar dos anos 90 cumprimenta os bons ventos dos anos 80.
Após o início crescente com as canções ganhando mais peso, temos em “Give Me A Reason” a calmaria característica da cantora presente em seus trabalhos anteriores. É aonde mora o perigo? Doro te explica que não ao cativar pela voz que contorna os compassos vagarosos da canção, sem deixar a peteca cair na poça de lama e correr o risco de manchar o vestido da bela dama. “Esta é outra manhã solitária / Parece mais uma noite solitária / Tenho quase certeza que vou desistir de esperar / Ou eu não deveria tentar mais uma vez” – me dê um motivo para segurar esse amor e ficar forte, constante em meu coração. Aproveitando a ocasião, eu diria que quem você ama diz muito sobre vossa persona. E é na próxima faixa, “Who You Love”, que você pode decifrar os mistérios da escolha do seu coração com a própria Doro ao recitar vários conceitos sobre a escolha de sua pessoa amada. O tema instrumental apresenta um leve molho de Rock radiofônico que funciona bem ao combinar com sua antecessora. O baixo é bem presente e a bateria consistente, apesar de um tanto ausente em questão de gravação talvez. É bem verdade que quando você ama, o seu mundo treme, você se desarma, enfraquece e fortalece ao mesmo tempo, sente o ar mais puro, sente o desejo pela conquista e medo da perda tudo ao mesmo tempo. Essa é a vida. Viva ela da melhor maneira e vamos continuar a jornada por aqui. Depois ainda temos um momento mais calmo e “baladístico” em “Scarred”, que a meu ver poderia estar em uma outra posição no álbum, ou até mesmo ser limada do disco. Não que seja ruim, mas é a terceira música seguida nesse formato, beirando a melancolia, mas a própria Doro consegue salvar a canção com seu poder de voz e sua garra ao levar muito a sério seus versos e estrofes.

Eis que finalmente temos algo com mais peso. E não poderia ser em outro formato. Doro cantando em sua língua natal! O nome da emoção? O narrador diria: “Ich Will Alles”! Heavy Metal germânico com aquela veia Punk, deixando mais forte e impetuoso. A distorção “gorda” do baixo e o “grave/estridente” das guitarras colocam a faixa bem próxima de algo mais sujo, pendendo brevemente para o Speed nos momentos mais agressivos. Rápida e elegante, se encaixa perfeitamente nas linhas vocais utilizadas por Doro que sabe muito bem o que faz quando o assunto é cantar em seu dialeto principal. E quem poderia emendar a fita só poderia ser o excelente cover de Billy Idol para a música “White Wedding”, que acabou por receber um videoclipe nos mesmos moldes da versão clássica, porém mais simplista e focando muito mais na Doro. Essa versão é mais intensa, mais pesada, voltada para o Metal, e podemos dizer que se trata da faixa Gothic Metal do disco por conta de suas linhas de guitarra, baixo e estilos de vocal utilizados na trama.
Quer mais peso? Fechando essa trinca pós-baladas temos “I Wanna Live” com seu clima de show ao vivo, assim como acontece em “Burn It Up”. Mais à frente, os encordoamentos param de vibrar e temos somente a bateria em compasso contínuo para que Doro e seus vocais de apoio chamem o público para cantar junto. E agora temos o momento de maior destaque, pois a lenda está presente: Lemmy Kilmister divide os vocais com Doro em “Love Me Forever”, faixa pertencente ao Motörhead e que o baixista/vocalista fez questão de que a senhorita Pesch interpretasse em seu novo disco à época. O dueto funciona de forma espetacular e a cereja do bolo é o próprio Lemmy tocando seu histórico baixo nessa versão cover. Os solos de guitarra são um show à parte e a bateria segue o roteiro original de forma magistral.
Na sequência temos algo ligado à banda de Lemmy, ou seja, “Fuel” é a próxima da lista a visitar os alto falantes de seu 3 em 1. Mais uma faixa pesada que mantém a boa pegada do disco e mostrando claramente porque Doro recuperou seu posto antes ofuscado por trabalhos que não obtiveram tanto êxito como este. Mais uma típica “múzga” que une elementos dos anos 90 com características dos anos 80, mas não se preocupe, pois nada aqui soa Grunge ou coisa do tipo. É Metal, é Rock, é Hard Rock, é Doro Pesch, caro amigo do esporte bretão sonoro! Aqui os drives de seus vocais se destacam junto aos momentos mais altos e límpidos, mostrando toda a habilidade da cantora que construiu sua identidade nos idos dos já citados anos 80. Um ponto interessante sobre o riff principal de “Fuel” é o seu formato, partindo de um acorde bem distorcido e emendando em um dedilhado quase se transformando em um riff/solo, ou algo do tipo. Esse diferencial marcou a canção positivamente e trouxe mais combustível ao álbum e não foi somente um trocadilho. “Estou tão exausto, baby, preciso de uma dose / Não consigo passar o dia / O trabalho foi demais / Eu preciso de uma pausa de todas as coisas que eu odeio / Venha agora antes que seja tarde demais” – o combustível da qual precisa está respondido em toda a canção e somente esse trecho já revela a solução.
Gosta de violão? Eu tenho medo de violão em discos de Metal, pois os integrantes podem se esquecer que existem guitarras no mundo e que precisam ser tocadas a plenas tarraxas. Essa balada em viola funciona bem e você pode enxergar as águas calmas do mar cumprimentando as areias de seus anseios. “Você não sabe que eu era um anjo / Você não sabe que meu coração era verdadeiro / O eu dei para algum diabo / E ele quebrou tudo em dois / E eu não preciso mais disso” – nem sempre o amor acerta na escolha e há a possibilidade de alcançar o céu ou despencar até o inferno, perdendo toda a razão e motivação para construir algo que valha à pena junto de quem achava ser o ideal. Aí você me pergunta sobre o nome da música. Está na cara que é “Constant Danger”! Ora, pois! Antes daquela que poderia vir a fechar o disco temos em mãos o encarte de “Black Rose”, mais uma daquelas baladas que remetem aos sons da década de 80 e que facilmente poderia tocar em rádios como Alpha e Antena 1. O compasso percussivo quase se assemelha às batidas do coração. A calmaria paira no ar de uma vez por todas e Doro mantém a chama da vela acesa para o que ainda está por vir. A faixa é breve, mas possui um trecho bastante profundo e que devem acontecer ou ter acontecido com muitas pessoas: “Eu vi você (como) lanternas traseiras / Desaparecendo na rua / Eu segurei aquela rosa negra / E cheirava tão doce / Um espinho cortou minha ponta do dedo eu machuquei tão profundamente dentro / E eu provei o sangue ruim de / Um bom amor que morreu.”

Agora sim é chegada a vez de quem poderia fechar as cortinas após a apresentação feita ao respeitável e honorável público. Claro que estamos falando de “Now Or Never (Hope In The Darkest Hour)” e seus acordes cheios e distorcidos. Nela sentimos a vibração de uma artista que sempre abre espaço para os músicos despejarem o lado técnico e agressivo nas partes rítmicas e nos solos que atravessam as pontes das composições. Notas agudas estendidas para o bem da humanidade e um ritmo alucinante que permeia todo o alicerce constituído para tal. Um Heavy/Rock de primeira para abrilhantar o trabalho e consolidar o tema, já que é agora ou nunca, ou seja, era a chance de alçar voos maiores ou naufragar em esquecimento. Finalmente encerrando a obra surge mais uma canção cantada em alemão por Doro. “Danke” agradece e se despede com uma sonoridade bem peculiar e extravagante, fugindo um pouco do habitual e oferecendo mais espaço para os teclados e efeitos de programming. As guitarras estão ali com linhas suaves, ficando mais em segundo plano, assim como a cozinha da banda. A temática envolve a confiança junto ao amor real mesmo nas horas incertas e que torna o personagem descrente de tudo, até mesmo sobre si mesmo, passar a valorizar suas conquistas.
E assim se encerra este que é um dos trabalhos mais produtivos de Doro após o fim do Warlock. Creio que se a vocalista já estivesse com uma banda fixa, poderia gravar discos com mais calma sem ficar viajando tanto para outros lugares e colocando tudo em cheque quase sempre. Em “Calling The Wild” a luta lhe trouxe bons frutos, mas foi bastante arriscado, embora a mesma possua muitos contatos e que com a ajuda destes que serão apresentados a você, enquanto continuar lendo a nobre epístola, conseguiu determinado êxito.
Staff:
- Doro Pesch (produção) faixas: 4, 7, 10, 11, 13, 15; (mixagem) faixa: 10
- Lemmy Kilmister (R.I.P. 2015) (produção, mixagem) faixa: 10
- Bob Kulick (R.I.P. 2020) (produção, mixagem) faixa: 10
- Jürgen Engler (produção) faixas: 1-3, 5, 8; (gravação e mixagem adicionais) faixa: 14
- Chris Lietz (produção, engenharia) faixas: 1-3, 5, 8, (gravação e mixagem aditionais) faixas: 14
- Jimmy Harry (produção, gravação, mixagem) faixas: 6, 9, 12
- Bruce Bouillet (produção, mixagem) faixa: 10
- Andreas Bruhn (produção, gravação) faixas: 4, 11; (mixagem) faixa: 9
- Uli Baronowsky (mixagem) faixa: 8
- Mike “Metal” Goldberg (produção, engenharia) faixa: 14
- Rudy Kronenberger (produção) faixas: 7, 13-15; (gravação, mixagem) faixas: 7, 13, 15; (engenharia) faixa: 14
- Greg Calbi (masterização) faixas: 1, 2, 4, 6, 8, 9, 11-14
- Michael Schwabe (masterização) faixas: 3, 5, 7, 10, 15
- Jochen Rolfes (fotografia)
“Danke, dass Du bei mir bist
Und dass Du mich auch nicht aufgibst
Danke, dass Du zu mir stehst
Und dass Du nicht wie alle anderen gehst
Danke, dass Du da bist, wenn es brennt
Und dass Dich niemals etwas von mir trennt
Danke, dass Du das Wahre in mir siehst
Und mich trotz allem immer noch liebst”
Danke, Doro!
Nota: 8,9
Integrantes:
- Doro Pesch (vocal)
- Jürgen Engler (baixo, teclado) faixas: 1-3, 5, 8; (guitarra) faixas: 1-3, 5, 8, 14
- Chris Lietz (programming, teclado) faixas: 1-3, 5, 8
- Jimmy Harry (todos os instrumentos) faixas: 6, 9, 12
- Joe Taylor (guitarra) faixa: 10
- Andreas Bruhn (guitarra, baixo, teclado) faixas: 4, 11
- Nick Mitchell (baixo) faixa: 14
Artistas convidados:
- Lemmy Kilmister (R.I.P. 2015) (baixo, violão) – faixas: 10, 16*
- Al Pitrelli (guitarra solo) faixas: 2, 5
- Slash (guitarra solo) faixa: 14
- Eric Singer (bateria) faixas: 10, 16*
- Mario Parillo (guitarra solo) faixas: 1-3, 5, 8; (guitarra rítmica) faixas: 5, 14
- Thomas Franke (bateria) faixas: 1-3, 5, 8, 14
- Bob Kulick (R.I.P. 2020) (guitarra) faixas: 10, 16*
- Michi Besler (bateria) faixas: 4, 11
- Kendal Stubbs (programming) faixa: 14
- Dirk Krause (teclado) faixa: 5
*“Alone Again”, faixa composta por Lemmy e que figura em edições especiais limitadas.
Faixas (versão europeia):
1. Kiss Me Like A Cobra
2. Dedication (I Give My Blood)
3. Burn It Up
4. Give Me A Reason
5. Who You Love
6. Scarred
7. Ich Will Alles
8. White Wedding
9. I Wanna Live
10. Love Me Forever
11. Fuel
12. Constant Danger
13. Black Rose
14. Now Or Never (Hope In The Darkest Hour)
15. Danke
Redigido por Stephan Giuliano
Aproveite para desfrutar um pouco mais sobre o histórico e as músicas da eterna Metal Queen através de outras duas resenhas feitas para o debut “Force Majeure” e o recente lançamento ao vivo chamado “Triumph And Agony – Live” em alusão ao maravilhoso disco de Doro frente ao Warlock, clicando nos links abaixo: