O novo trabalho do Dream Theater estava sendo aguardado por praticamente todo entusiasta do Prog Metal que se preze. E os motivos para tamanha expectativa são muitos, sendo que o retorno do baterista e membro fundador Mike Portnoy após 13 anos talvez seja o de maior impacto. Mas é necessário esclarecer que somente a presença imponente de Portnoy não seria capaz de saciar o exigente fã da banda. Sendo assim, o quinteto de Long Island (Nova York) precisaria apresentar um disco realmente forte, impactante e, de preferência, surpreendente. Pois foi exatamente isso que aconteceu e vamos nos aprofundar um pouco em cada aspecto deste grande lançamento.
“Parasomnia” foi lançado no último dia 7 de fevereiro através da InsideOut Music. O décimo sexto álbum da carreira do Dream Theater é composto por 8 faixas e pouco mais de 1 hora e 11 minutos de duração. Trata-se de um disco conceitual onde cada ponto está perfeitamente interligado a outro e, por este motivo, o trabalho funciona tão bem.

O teatro dos sonhos no reino dos pesadelos
O termo “Parasomnia” (em português Parassonia) se refere a tipos diferentes de distúrbios do sono. Alguns dos mais assustadores tratam de sonambulismo, terrores noturnos, confusão, paralisia do sono, pesadelos recorrentes e até mesmo transtornos alimentares e comportamentos sexuais anormais. Existe uma enorme variedade de distúrbios e diversas classificações que podem fazer referência ao NREM (Non-rapid eye movement) ou REM (Rapid eye movement). Para entender melhor, você pode ler um artigo detalhado clicando AQUI.
Este tema é interessantíssimo, principalmente, se pensarmos que estamos nos referindo a uma banda batizada como ‘teatro dos sonhos’. E apesar de soar quase uma afronta o fato do grupo nunca ter pensado neste conceito em mais de 35 anos de carreira, finalmente, chegou o momento de abordá-lo. E é aqui que começamos a perceber a minúcia dos envolvidos em cada detalhe. Por exemplo, a arte da capa desenvolvida por Hugh Syme para “Parasomnia” funciona como uma espécie de versão obscurecida (ou um contraponto) da capa de “Images And Words”, desenvolvida por Larry Freemantle em 1992.

Habilidade e maestria ao contar uma história
Ao entender o conteúdo lírico do disco e visualizar a arte de capa, mesmo sem ouvir uma única música, automaticamente, nos preparamos para um disco soturno, denso, climático e, é claro, muito pesado. Caso não fosse esta a entrega musical apresentada não tenha dúvida que o conceito teria sido todo comprometido, mas é exatamente isto que o Dream Theater entrega ao seu ouvinte. Para ser sincero, entrega ainda mais. As letras são um trunfo, uma verdadeira carta na manga, já que o ouvinte que se permitir fazer audições detalhadas e acompanhando a parte lírica, certamente, sairá impactado no final da experiência.
O tracklist funciona da seguinte maneira, cada faixa traz um distúrbio do sono relatado de uma forma diferente. Os temas não são apresentados de uma forma simplória, mas do ponto de vista de personagens sofrendo com estes problemas. As canções apresentam histórias (muitas vezes) agoniantes e tensas onde você não fica confortável em descobrir os desfechos. E aí entra toda a genialidade dos músicos que conseguem transmitir estes sentimentos através de trechos instrumentais encaixados de forma perfeita e sob medida.

Nos braços de Morfeu, ou quase…
O álbum abre com a instrumental “In The Arms Of Morpheus”. Morpheus (em português Morfeu), na mitologia grega é deus do sonho, irmão de Hipnos, deus do sono. O termo “nos braços de Morfeu”, popularmente, significa “ter um sono tranquilo e com bons sonhos”, como se estivesse envolvido pelo deus. Como estamos falando de distúrbios do sono, a única coisa que não veremos no decorrer do álbum são bons sonhos. Talvez, este Morfeu tenha alguma intensão diferente ou esteja cumprindo o seu outro propósito, já que ele também era o mensageiro pessoal de Hades, o senhor dos mortos.
Musicalmente, o Dream Theater consegue passar a mensagem mesmo com um tema instrumental. A faixa inicia suave e climática, vai crescendo e culmina em um riff pesado do guitarrista John Petrucci. Mike Portnoy de cara apresenta seu cartão de visitas com algumas viradas estonteantes que são sua assinatura particular. A faixa vai se desenrolando tensa e ao evoluir culmina num solo muito bonito e sentimental de Petrucci. É quase como se estivéssemos realmente nos braços de Morfeu, prestes a ter um sono tranquilo e repousante, mas é claro que isto não é uma opção. Não neste disco.
“Night Terror” inicia e trata-se de uma canção pesada que traz uma coleção de bons riffs e levadas. Nela somos iniciados aos conflitos e pavores de quem sofre de terror noturno. Interessante notar que o tecladista Jordan Rudess mantém este início de álbum em uma frequência enigmática ao se utilizar de atmosferas e passagens que soam quase extra-sensoriais. Após cerca de dois minutos de uma introdução criativa e bem elaborada, o vocalista James Labrie aparece pela primeira vez. Com linhas contidas, o cantor vai despejando versos que representam desespero e confusão de quem passa por noites a fio atormentado por imagens irreais e assustadoras.
“Mente desperta/ Corpo em repouso
Flutuando na transição do sono
Estado iminente/ Nadando nas ondas
Condição de sonho sensorialSem aviso
Caio no poço sem fundo
Minha pele rasteja
Preciso me agarrar para sair deste inferno”
Casos verídicos, histórias perturbadoras
“A Broken Man” traz a história de um veterano de guerra que sofre com pesadelos frequentes e insônia. Tudo isso, graças as experiências traumáticas e cenas pavorosas vivenciadas no campo de batalha. No início da música e em outros trechos podemos ouvir áudios reais de veteranos relembrando os horrores da guerra e compartilhando suas terríveis lembranças. Liricamente, tudo isso é explorado com precisão cirúrgica.
“Aflito com a culpa de abandonar
Companheiros deitados imóveis
Olhos sem alma me encaram
estou Quebrado, doente eu me sintoE os sonhos, o que será?
Uma maldição assombrosa
Tóxica e sombria
Estou piorando
Morto por dentro
Embora eu tenha tentado
Eu sei que sou
Um homem quebrado”
No campo musical, esta é uma faixa poderosa onde o quinteto explora de forma inteligente o turbilhão de sentimentos do personagem para inserir diversos trechos instrumentais complexos. É como se a canção representasse em cada mudança rítmica as mazelas enfrentadas por um homem atormentado. O passado está retornando noite após noite como se fosse um fantasma pedindo explicações e, dessa forma, a cobrança traz arrependimento, culpa, desespero e revolta.
Já em “Dead Asleep”, temos um dos temas mais pesados do disco. A história narra de maneira brilhantemente aterradora um homem que sofre de sonambulismo e, ao acordar, encontra sua esposa morta. Impossível não sentir um frio na espinha ao ouvir os versos:
“Desesperado na escuridão, com medo por sua vida
Certo de que um assassino entrou
Ele procura uma arma, alcança uma faca
Um assassinato em sono profundo começaFoi um encontro vívido, uma luta realista
E agora ele está com sangue nas mãos
Ele está em cima do corpo, vê que é sua esposa
Um pesadelo que ele não consegue entender”
O Dream Theater explora nesta música um tema complexo. Afinal, como uma pessoa que estava dormindo e cometeu um crime sem ter controle de suas faculdades mentais pode ser responsabilizada legalmente? Como esta pessoa lida com a culpa? Certamente, esta é uma música que irá desafiar o ouvinte a fazer reflexões à respeito da fragilidade da mente humana.
E tudo isso sem mencionar que é uma das melhores faixas de “Parasomnia”. Com riffs incríveis e um ritmo cadenciado/pesado que faz menção a “Home” – música de 1999 presente no álbum “Metropolis Pt. 2: Scenes from a Memory” – “Dead Asleep” traz um refrão grudento e explora muito bem a criatividade quase inesgotável da sessão rítmica formada por Mike Portnoy e John Myung.

A linha tênue que separa a realidade e o subconsciente
Ainda abordando o tema espinhoso e reflexivo que é a dificuldade de algumas pessoas em separar realidade de sonhos vívidos, ficamos diante do “Midnight Messiah” (o Messias da Meia Noite). Apresentado como uma espécie de entidade, o Messias se alimenta da nossa confusão, desesperança e falta de propósito para surgir da escuridão e nos guiar a um mundo de lembranças agradáveis, prazeres mundanos e desejos reprimidos. As vítimas do Messias se distanciam da realidade e passam a viver em sonhos utópicos onde a linha tênue entre realidade e subconsciente muitas vezes acaba sendo transpassada.
“Tem um lugar que eu vou
Onde ninguém tem medo
É uma sensação que todos conhecemos
Mas todo mundo tem vergonha de dizerNos meus sonhos
Tem uma chama ardendo forte
Movimento constante brilha na noite
Para sempre queimando fora de controle
Repetidamente, sem pararMessias da meia-noite
A escuridão desce
Eternamente conectado
O sonho nunca acaba
Desejos crepusculares
Messias da meia-noite”
Esta é uma música totalmente old school do Dream Theater. Com letra de Mike Portnoy e diversas menções a músicas como “Home”, “Constant Motion”, “This Dying Soul” e “Strange Déjà Vu”, entre outras, podemos conferir uma banda resgatando algumas raízes importantes de seu passado. O refrão engata um Speed Metal surpreendente e, no geral, esta é a faixa mais tradicional do tracklist.
“Are We Dreaming?” funciona como uma espécie de vinheta e traz apenas duas frases: “Is that it? Are we dreaming?” (“É isso? Estávamos sonhando?”). É quase como um despertar proporcionado pela temática de “Midnight Messiah”, mas pode ser encarada como um questionamento sobre em “qual realidade estamos presos”. Na sequência, “Bend The Clock”, apesar de ser uma balada muito bonita, apresenta a luta contra a paralisia do sono, uma das Parassonias mais angustiantes. O protagonista está nitidamente cansado de lutar, mas ansioso por “dobrar o relógio” e, dessa forma, poder escapar dessas experiências que se repetem sucessivamente e o impedem de ter paz.
“Desgastado, me sentindo fraco
Sonhos infernais, cenas atormentadoras
Sombras se aproximando
Estou paralisado, não consigo me mover
Assustado e confusose eu pudesse dobrar o relógio
O caminho do tempo
Deixar tudo pra trás
chega de sonhos paralisantes”

O homem das sombras
Finalmente chegamos a “The Shadow Man Incident”, o grande épico do álbum. Ele traz mais de 19 minutos de duração, múltiplas camadas, variações rítmicas constantes e sessões instrumentais de tirar o fôlego. Aqui somos apresentados a um desfecho pouco provável, mas altamente satisfatório. O Dream Theater poderia enveredar por um caminho científico e apresentar uma mensagem tranquilizante ou esperançosa para as vítimas dos diversos distúrbios apresentados em “Parasomnia”.
Porém, o grupo preferiu trazer a vida uma entidade maligna misteriosa que persegue suas vítimas durante momentos de fragilidade – como o sono – e a colocar como a grande responsável oculta por todas as parassonias existentes. Convenhamos, faz mais jus ao conceito idealizado pela própria banda ao se autoproclamar o ‘teatro dos sonhos’. O conceito de Homem das Sombras faz conexão com diversas lendas e relatos sobre um ser misterioso que persegue pessoas, observa das sombras e surge como uma manifestação dos medos mais profundos.
“Com sete pés de altura, ele é uma visão a se ver
Histórias do homem de chapéu surgiram séculos atrás
Vestindo um manto preto esvoaçante e um relógio preso a uma corrente
Ele fica no canto na escuridão enquanto você enlouquece
Lutando para respirar enquanto o íncubo se senta no seu peito
O demônio da noite espera enquanto você sonha, parado sobre sua cama”
A viagem musical proporcionada por esta música é algo realmente impressionante. A introdução possui um trecho em específico que lembra vagamente “A Marcha Imperial”, tema de Darth Vader do universo Star Wars, o início da parte cantada é propositalmente lento para dar ênfase a letra sinistra e o clímax estrutural chega repleto de energia e peso. Em alguns momentos você até pensa que a banda irá descambar para momentos de autoindulgência, mas isso nunca acontece. Absolutamente todas as sessões instrumentais são criativas ao extremo e, mais do que isso, necessárias para que a faixa funcione.

Impecável e brilhante, doa a quem doer
Quem acompanhou as entrevistas concedidas pelos integrantes antes do lançamento de “Parasomnia”, viu que o baterista Mike Portnoy afirmou que o disco traria o Dream Theater para uma posição de continuar à partir de onde parou “Black Clouds & Silver Linings”, o até então último trabalho a contar com o músico. Analisando friamente, podemos afirmar que o novo álbum faz um pouco mais que isso. Ele também traz muitos elementos de “Train Of Thought” (2003), algo aqui e ali que pode ser linkado a “Six Degrees Of Inner Turbulence” (2002) e, em alguns momentos mais selecionados, até mesmo um pouco de “Awake” (1994).
É nítido que esta é a melhor formação da banda. Quando estes cinco senhores resolvem trabalhar em equipe para produzir conteúdo de qualidade, fica difícil algo dar errado. Mesmo com algumas limitações proporcionadas pelo tempo aos vocais de James LaBrie, o Dream Theater encontrou uma forma de driblar este pormenor e, ainda assim, lançar um registro que eu não me surpreenderia caso se transformasse em um dos favoritos dos fãs já à curto prazo.
“Parasomnia” é bem produzido, possui um conceito fortíssimo, a execução é primorosa e, o principal, está repleto de composições marcantes e com potencial para se transformar em novos clássicos da banda. É uma obra que necessita de diversas audições, pede uma atenção diferenciada com os conceitos líricos e a imersão profunda do ouvinte é obrigatória para uma experiência totalmente satisfatória. Respeitando estes pré-requisitos, você estará diante de uma obra tão peculiar quanto brilhante.
Nota: 9,4
Integrantes:
- James LaBrie (vocal)
- John Petrucci (guitarra)
- John Myung (baixo)
- Mike Portnoy (bateria)
- Jordan Rudess (teclado)
Faixas:
- In the Arms of Morpheus
- Night Terror
- A Broken Man
- Dead Asleep
- Midnight Messiah
- Are We Dreaming?
- Bend the Clock
- The Shadow Man Incident
Ainda não consegui ouvir o álbum inteiro, mas ouvi Night Terror, que achei mediana, e A Broken Man, essa sim uma música primorosa.