Primeiramente, peço desculpas pelo texto grande, mas também peço que leiam até o final, garanto que vai valer a pena.
O que dizer desta banda que tanto me surpreende a cada lançamento? Começarei pelo óbvio, para os que ainda não conhecem a fundo, o Havok foi formado em 2004, em Denver, no estado do Colorado, os estadunidenses possuem cinco álbuns lançados, sendo este “V”, o mais novo registro do quarteto. Devo mencionar que os thrashers aqui mencionados, segundo este que vos escreve, ocupam o pódio supremo entre as bandas desta nova geração. Se você nunca ouviu discos como “Burn”, “Time Is Up”, “Unnatural Selection” ou “Conformicide”, corre logo atrás do tempo perdido e faça a sua lição de casa. Esses caras são diferenciados em quase todos os sentidos e, apesar de em sua proposta inicial, terem entregue apenas um Thrash Metal old school bem executado, eles vem evoluindo muito a cada novo lançamento e, fatalmente, você será arrebatado.
O Havok não é uma banda comum, com ideias comuns e discos que repetem uma fórmula, os caras são muito bons tecnicamente, são criativos, ousados e, ao contrário de muitas bandas que se dizem “politizadas”, eles tem realmente algo a dizer. Quando estiver diante de um novo registro do Havok, além de se encantar com a pancadaria sonora proporcionada, tente dar uma atenção para as letras, é apenas uma dica que dou. Até o final desta resenha, você vai entender um pouco o que estou querendo dizer.
Ao ouvir “V” pelas primeiras vezes, imediatamente, notei que tratava-se de algo diferenciado e, por isto, a sua análise também precisava ser diferenciada. Desde o lançamento de “The Rise Of Chaos”, do Accept, e “Conformicide”, do próprio Havok, eu não senti a necessidade de escrever um texto tão detalhado, mas as mensagens contidas nestes trabalhos pediam isto e, no caso de “V”, tenho o mesmo feeling.
Ao iniciar a audição, temos “Post-Thruth Era”, bem ao estilo faixa de abertura bombástica. Logo de cara, percebe-se a produção impecável e o baixo ao melhor estilo “zangão” quebrando tudo, cortesia do novato Brandon Bruce. Em tempos onde as fake news são uma realidade em nossas vidas e o jornalismo atual parece estar mais preocupado em desinformar do que informar, estes malacos iniciam seu disco dando este tabefe nas nossas fuças:
“Era da pós-verdade/ Controle complexo da mente/ Não confie em seus olhos/ Desaprenda o que você acha que sabe/ Era da pós-verdade/ Você está sendo enganado/ Seus olhos são inúteis/ Quando sua mente está cega”.
Pode-se afirmar que “V” é, de certa forma, conceitual, já que ele explora assuntos que se interligam. Aqui, os temas vão variar entre política, controle em massa, elevação da consciência e planos secretos que beneficiam poucos, fazendo da vida de muitos um inferno. Se identificou? Pois é, eu também.
A segunda canção é “Fear Campaign”, é quase uma continuação da primeira, já que trata-se de outra pedrada visceral e traz uma letra que complementa o que foi dito anteriormente. Realmente, vivemos em uma época de pós-verdades, o que importa não é realmente a notícia, mas se essa notícia embasa a sua visão de mundo. Quase todos caímos nessa armadilha mental. Olhando o que a mídia tem feito com a população em tempos de pandemia, não tem como discordar destas frases:
“Eles estão usando o medo para controlar você/ Eles usam o medo/ Em uma campanha de medo/ Sem restrições, infecta seu cérebro/ Mas o medo perde o controle quando você se vira e desvia o olhar/ Rejeite o medo”.
As três músicas seguintes trazem um outro lado da banda e trocam a velocidade pela cadencia. Todas as três (“Betrayed By Technology”, “Ritual Of The Mind” e “Interface With The Infinite”) são excepcionais e demonstram uma habilidade ímpar em transitar entre o Thrash mais veloz e aquele Thrash mais melodioso e pesado. Em “Betrayed By Technology”, os caras fazem menções a quarta revolução industrial que se aproxima,
“Traídos pela tecnologia/ Transcendendo a biologia/ Está chegando!/ Em todo o mundo/ Automação em larga escala será realizada/ A dominação da automação começou”
“Ritual Of The Mind” é quase uma conclamação para que voltemos a usar nossa mente.
“A natureza tem as respostas/ O sistema tem as mentiras/ Reconecte-se com o arcaico ritual da mente”.
Em “Interface With The Infinite”, os caras usam mensagens subliminares e alegorias para retratar uma espécie de poder superior ou inteligência artificial por traz de tudo o que ocorre no mundo:
“Você recupera a conexão/ Com a mente inconsciente/ Obliteração temporária/ Daquele que você chama de ‘I’/ Alucinação, Neurogênese/ Interface com o Infinito”.
Deu pra sacar o nível dessas mensagens?
Até este momento, “V” se assemelhava bastante com o terceiro disco de estúdio da banda, o ótimo “Unnatural Selection”. Até mesmo a ordem das músicas deixava isso subentendido e, caso isso se confirmasse, não seria uma surpresa. O álbum anterior (“Conformicide”) havia recebido algumas críticas por seu conteúdo bastante experimental e, caso os caras tivessem resolvido dar um passo para trás e ter feito um registro mais “tradicional”, isto não seria nenhum demérito. Como vamos ver adiante, isso não ocorreu. “V” vai além de “Unnatural Selection” demonstrando ser um disco muito mais rápido e visceral, porém, não se afasta tanto de “Conformicide”, trazendo a sua cota generosa de experimentações.
Passando um pouco da metade da audição, temos a intro “Dab Tsog”, com pouco mais de um minuto e servindo como uma espécie de divisão entre a primeira e a segunda parte do disco. Ela serve de abertura para a composição mais brutal de toda a carreira da banda, a pistoluda “Phantom Force”. Em uma palavra, essa música é um arregaço. Todas as linhas, tanto de baixo quanto de guitarras são um espetáculo, isso sem contar a performance do baterista Pete Webber, que apresenta todo seu cartão de visitas e não deixa pedra sobre pedra. Na letra, temos algo como um pesadelo dentro de um pesadelo, já que nas canções anteriores os caras expõe todo o caos em que vivemos, aqui temos uma espécie de sequela causada por essa vida cheia de contratempos. A tal “força fantasma” é uma entidade paranormal que te caça e não te deixa vencer ou ter bons momentos até mesmo dentro de seus próprios sonhos. Na sequência, outra porradaria das bravas, “Cosmetic Surgery” possui riffs primorosos e exemplifica a química presente entre os músicos. Contratempos, viradas, mudanças rítmicas e pronto, temos uma das melhores faixas de “V”. A letra traça um paralelo bastante interessante ente dois tipos de pessoas. Aquelas que mudam o seu físico ou sua aparência (apesar disso não mudar o seu interior) com aquelas pessoas que estão acima dos nossos olhos, os grandes líderes mundiais e figurões donos do poder, que escolhem quais as “verdades” que nos serão enfiadas goela abaixo.
“Os assassinos da verdade estão caçando de novo/ Eles promovem outra matança, com o toque de uma caneta/ Eles escolhem o que você vai aprender hoje/ Por que amanhã, amanhã a verdade será o que eles dizem que é”
Nos aproximando do final do disco, temos mais três belíssimas composições, duas bastante experimentais (“Panpsychism” e “Don’t Do It”) e mais um Thrash rápido, ríspido e direto ao ponto (“Merchants Of Death”). “Panpsychism” é a minha favorita, pouco mais de seis minutos de muitas reviravoltas sonoras, riffs e solos destruidores e, até mesmo, alguns vocais limpos de David Sanchez. Nesta letra temos algo extremamente filosófico, é como uma transcrição sobre um estado mais elevado da mente humana, onde percebemos que nosso cérebro é muito mais hábil do que jamais imaginamos…
“consciência é a base da existência/ Um cisma filosófico/ Estar ciente de sua própria consciência/ Panpsiquismo”.
Em “Merchants Of Death”, Havok nos lembra que a vida humana é descartável e estamos rumando por uma estrada sem volta:
“Aproveitando os lucros da guerra/ Não importando o custo humano/ Todos sabemos o que estamos buscando/ Um maldito Holocausto em escala global/ A guerra contra o terror é uma fraude/ O dólar financia o ‘inimigo’/ Nossa política externa falhou/ Estamos atrasados para a terceira guerra mundial”.
Fechando com chave de ouro essa verdadeira epopeia musical, temos a diferentona, porém, épica, “Don’t Do It”. Cheia de grooves e alguns vocais limpos, o quarteto arrisca sem medo tendo a certeza de que o dever foi cumprido já nas canções anteriores. Foram muito inteligentes ao deixar esta faixa por último, se tivessem colocado entre as primeiras canções do tracklist, talvez teriam assustado alguns ouvintes mais tradicionalistas, mas aqui no apagar das luzes e com a entrega de diversas canções memoráveis, o ouvinte escuta “Don’t Do It” com outros ouvidos. Se lembra de “Ingsoc”, presente no álbum “Conformicide”? Pois é, a experimentação é mais ou menos nesse nível. Não vou entregar muitos detalhes para não estragar a surpresa.
Obs: a letra é uma espécie de manifesto sobre o suicídio.
Tanto este, quanto os lançamentos anteriores da banda, deveriam ser obrigatórios para todos os que insistem em pregar baboseiras político-ideológicas como regras a serem seguidas. Em tempos perturbadores como este em que vivemos, onde a confusão política e acontecimentos trágicos como esta pandemia nos forçam a viver uma vida totalmente diferente do que a que estamos acostumados, o Havok traz à tona um registro brilhante que elucida questionamentos que muitos de nós não fazemos. “V” é um registro de verdades indigestas e críticas inteligentes, é um trabalho que nos obriga a pensar e a rever posicionamentos.
Em tempos onde o “dividir para conquistar” é uma realidade que nos é imposta e o meio Metal se encontra tão fragmentado e fragilizado, eis uma banda que nos traz de volta o Thrash Metal raiz. Aqui, temos uma voz dissonante em meio a bandas que se pronunciam politicamente vomitando meias verdades e/ou verdades convenientes. “V” nos lembra o verdadeiro espírito do Thrash: anti-sistema, politizado, porém, anti-políticos. Um disco que merece ser ouvido, reouvido e dissecado.
Vida longa ao Havok!
Nota: 9.7
- Integrantes:
- David Sanchez (vocal e guitarra)
- Pete Webber (bateria)
- Reece Scruggs (guitarra solo)
- Brandon Bruce (baixo)
- Faixas:
- 1. Post-Truth Era
- 2. Fear Campaign
- 3. Betrayed by Technology
- 4. Ritual of the Mind
- 5. Interface with the Infinite
- 6. Dab Tsog
- 7. Phantom Force
- 8. Cosmetic Surgery
- 9. Panpsychism
- 10. Merchants of Death
- 11. Don’t Do It
- Redigido por Fabio Reis