Amadurecimento. Essa palavra é até hoje algo meio desconhecido por muitas pessoas. Mas de uma forma ou outra, todos nós passamos por momentos que servem de motivação para um crescimento posterior. Seja o início de uma jornada, como um relacionamento, um trabalho ou um término, o amadurecimento atinge a todos, indiretamente ou diretamente. Mesmo que seja de forma tímida, ele sempre é bem vindo, pois costuma ser algo positivo. Quando vamos envelhecendo é de conhecimento comum que nossos gostos costumam amadurecer conosco, mesmo que não signifique mudar de opinião sobre coisas antigas, o nosso gosto é naturalmente afetado pela nossa situação mental e emocional atual.
Musicalmente falando, o amadurecimento tende a trazer um entrosamento e uma condição sonora extremamente favorável, e isso é perfeito para os amantes de todos os estilos. Ainda mais quando falamos de bandas que ‘envelhecem’ bem com os passar dos anos. Esse é um caso excepcional quando falamos de um estilo tão brutal quanto o Death Metal. Geralmente as bandas desse estilo costumam soar sujas e podres nos seus primeiros lançamentos, com produções cavernosas e sem nenhuma preocupação com uma melhor qualidade sonora (é claro, existem as exceções). E com o passar dos anos elas vão melhorando sua qualidade e vão atingindo um patamar superior, muitas vezes continuando com as características anteriores, mas prezando uma qualidade maior nas novas composições. Exemplos clássicos são de nomes como, Bolt Thrower, Death, Jungle Rot, mas se você acha essas bandas ‘velhas’ e por isso é ‘justificável’, eu ainda cito Revocation, The Faceless, Obscura, Inferi, Fallujah e muitas outras. A verdade é que, assim como relações humanas comuns, como um namoro ou casamento, os erros ensinam muito, porém infelizmente, muitas vezes eles só são corrigidos tardiamente. Mas esse não é o caso aqui. Felizmente, os felizardos da vez aprenderam muito com seus lançamentos prévios e isso os possibilitou acertar mais ainda em 2022. Aos que me conhecem fora do âmbito de resenhista e redator, sabem bem o quanto preso pela qualidade de produção, tanto musical como visual e de enredo. E por isso me surpreendi mais ainda com esse lançamento dos americanos do Allegaeon.
Desde 2008, com o EP homônimo, a banda surpreendeu com uma qualidade de produção maravilhosa. Um EP independente, mas bem feito, com composições dignas de serem mencionadas como obras, mesmo que escritas por jovens que tinham um sonho despretensioso de alcançar a fama. Já nos anos seguintes, o quinteto conseguiu um contrato com a gigante Metal Blade Records (um feito admirável), e em 2010, o disco de estreia chegou literalmente chutando portas, “Fragments of Form and Function” é bem trabalhado e possui uma direção muito mais profissional, desta forma, a banda embala um ótimo registro com composições como “The Renewal” e “The God Particle”, capaz de invejar aqueles apaixonados pelo estilo proposto pelos americanos, o Technical Death Metal.
Em 2012, “Formshifter” é lançado. Um pouco menos direto e mais complexo, esse disco mostrou que a banda vinha buscando organizar ainda mais suas composições. É verdade que deixaram um pouco de lado aquela brutalidade e som mais cru, mas isso não prejudicou de forma alguma o resultado final. O vocal de Ezra soa único e combina muito bem com o estilo, mas mesmo assim, faltava algo. Esse álbum trouxe ótimas faixas como “Behold (God I Am)” e “Twelve – Vals for the Legions”, porém, foi apenas em 2014 que eles realmente se encontraram em “Elements of the Infinite”, este excepcional, mostrando maturidade e com instrumental muito bem construído. Os vocais de Ezra pareciam ter atingido uma nova condição muito mais interessante sem deixar de lado sua característica de rasgados. Isso tudo sem mencionar a preocupação com ambientações bem direcionadas, e claro, um bom humor maravilhoso nos clipes. Composições como “Threshold of Perception”, “The Phylogenesis Stretch”, “1.618” e “Genocide for Praise – Vals for the Vitruvian Man” são de tirar o fôlego. Realmente este foi um disco muito forte.
Como qualquer relacionamento humano, o término gera dor, mas também traz o famigerado amadurecimento ao qual mencionei no princípio. E infelizmente, o vocalista Ezra se afastou da banda. O único membro fundador que permaneceu no grupo é Greg Burgess, excelente guitarrista e compositor. Em 2016, ele se junta a um time de peso e lança aquele que seria um dos melhores discos do ano do estilo para este que vos escreve, “Proponent for Sentience”. O disco uniu de forma excepcional o trabalho anterior a uma nova empreitada, mais caricata e épica, utilizando de atmosferas e orquestrações (essas a cargo do ‘silencioso sexto membro’, Joe Ferris) mais presentes e delineadas sobre uma influência progressiva evidente. A apresentação de um vocalista com uma voz bem próxima a de Ezra, porém, menos rasgada e um pouco mais versátil, é claro que me refiro a Riley McShane, trouxe grandes ganhos para o Allegaeon. Os solos de Greg se tornaram mais técnicos e um pouco menos exagerados (em velocidade), dando uma classe maior a este disco. Das 12 faixas, o disco pode ser destacado por composições como as 3 sessões chamadas “Proponent for Sentience”, sendo a última uma colaboração entre Björ Strid (Soilwork e The Nightflight Orchestra) e Ben Ellis (Scar Symmetry e ex-Bloodshot Dawn). Além disso, as canções “All Hail Science” e “Of Mind And Matrix” que são de arrepiar, o disco é ótimo, do início ao fim.
Em 2019, a banda lança “Apoptosis”, um álbum bem diverso, que flutua bem entre a época mais brutal e suas influências mais progressivas, com Riley chamando muito atenção por sua versatilidade. Isso pode ser conferido na faixa “Tsunami And Submergence”. Também é possível destacar composições como “Apoptosis” e “Interphase/Meiosis”.
Bem, não contentes com essas evoluções contínuas álbum à álbum, o grupo seguiu seu caminho de não se acomodar jamais e me surpreendeu mais uma vez com o seu novo lançamento de 2022. Preciso dizer que esta e uma verdadeira obra de arte que foi concebida sob o nome “DAMNUM”. O novo registro dos americanos é rico em detalhes e nuances, desde sua excelente capa, que é um verdadeiro quadro impressionista que expressa bem o caos organizado que é o retrato sonoro da banda, até o nível altíssimo de dificuldade técnica imprimida em cada uma das composições.
DAMNUM vem do latim e significa ‘dano’, e isso é expresso na capa feita por Travis Smith, que também fez obras para Opeth, Fleshgod Apocalypse, Vaelmyst, Katatonia, Mother of All, Nightfall e outros. Os detalhes em cada canto da capa são explícitos e fazem dela uma das mais legais que eu me deparei nos últimos tempos. Quando entramos no quesito sonoro, somos agraciados pelo suprassumo da genialidade de Greg e seus afiliados. Claro, devemos agradecer principalmente a ele, visto que é o compositor principal, mas também não podemos esquecer de cada um dos músicos que aqui se dedicaram de corpo e alma para que esse petardo de 12 faixas visse a luz do dia.
Outro elogio deve ser feito a gravadora Metal Blade Records, que deu a esse disco uma profundidade incrível. DAMNUM irrompe com a excepcional “Bastards of the Earth”, uma verdadeira aula de como se mesclar influências clássicas ao bom e velho Metal brutal. Os vocais mais trabalhados e menos rasgados de Riley encantam, dando peso as linhas de base rápidas e potentes. Suas notas graves são excepcionalmente audíveis e cativantes. A composição do solo é outra obra prima. Na sequência, o compacto impressiona de forma magnífica com “Of Beasts and Worms”. Com uma introdução introspectiva e que te prende ao que irá acontecer depois, a música explode em riffs de estremecer o coração do mais bruto fã de Metal extremo. Riley novamente apresenta seus graves bem fortes que antes, na introdução, são doces vocais limpos. Próximo ao refrão, a mudança vocal feita por ele é assombrosa, mostrando que nem sempre o vocalista de Death Metal precisa ter uma voz mortífera e obscura. O andamento instrumental da faixa é excepcional, com blast beats de Jeff Saltzman explodindo os ouvidos do fã. Outro ponto excelente da música é o trabalho entrosado dos três conjuntos de cordas, composto por Greg e Michael Stancil nas guitarras e Brandon Michael no baixo. Aqui, em nenhum momento um instrumentista sobrepõe o outro, dando a nós o sentimento caos organizado.
Não esquecendo suas influências progressivas, “Into Embers” da as caras, com pontes diretas e complexas, que findam em bases arrasadoras. Uma composição que une excepcionalmente bem o que a banda vinha apresentando ao longo da carreira, a linha tênue entre peso e técnica. Possuindo partes verdadeiramente empolgantes, a música transporta o ouvinte para outra atmosfera, dando uma sensação de tranquilidade e inquietude, paradoxalmente. “To Carry My Grief Through Topor and Silence” é mais uma daquelas faixas que sabem como brincar com o psicológico do ouvinte. Representando bem o trabalho excelente da banda, a faixa flutua entre sentimentos, dando uma vasão excelente para a brutalidade e a raiva. Enquanto isso, “Vermin” mostra suas garras em meio a riffs técnicos e progressivos, além dos vocais graves.
Gosto sempre de lembrar do acerto que foi escolher Riley como vocalista da banda. Ele ajudou bastante neste visível salto de qualidade. Por mais que seu vocal se assemelhe bastante ao de Ezra, sua versatilidade é um prato cheio para o que o Allegaeon vem apresentando. Deixando um pouco de lado a rapidez extrema, “Called Home” é uma composição mais cadenciada, lembrando em partes uma união extremamente saudável entre Nile e Evergrey. São 7 minutos de um épico que explora de forma exímia todas as influências do conjunto. Já “Blight” assume o papel de responder a todos que querem mais peso novamente. Uma faixa que facilmente teria sido escalada para os primeiros discos da banda, representa o saudosismo a todos aqueles que gostam do bom e velho Death Metal técnico e direto. Até mesmo o solo aqui é mais rápido, bruto e, digamos, excitante. A este que vos escreve, e que acompanha a banda desde seu primeiro disco, é simplesmente magnífico depois de tanto tempo ainda ouvi-la mantendo suas origens! “The Dopamine Void, pt I” é uma transição bonita em meio a toda atmosfera introspectiva e bruta do disco. Trabalhando como um oásis no deserto de Mad Max, a faixa de 2 minutos trás calmaria aos corações acelerados pelo êxtase provocado até aqui por esta audição.
O mesmo não pode ser dito por “The Dopamine Void, pt II”. Aqui nós ouvimos o mais alto nível atingido pela banda em toda a sua carreira. Abraçando as antigas fórmulas, mas ainda sim inserindo novas inspirações e flutuando excelentemente entre todos os universos por eles mesmos construídos, a nona faixa do compacto encontra a representação máxima do que o Allegaeon pode e está fazendo nos dias de hoje. Sim, a você fã de Metal, aqui encontrará o que de melhor há na música do quinteto.
Mas se você acha, caro leitor (e ouvinte) que não há como melhorar isso, “Saturnine” surge para te provar que tudo o que foi dito antes precisa ser revisto. Temos aqui um ‘mind-blowing’ poderoso, pois a a junção do peso, virtuose, sentimentalismo, belas harmonias, agressividade, alternâncias rítmicas e muita criatividade, oras, é simplesmente absurdo! “In Morning” se trata novamente de uma transição para acalmar os ânimos do ouvinte. Bela e tênue instrumental, essa faixa tem personalidade em seus 2 minutos e é uma excelente antecessora da música de fechamento de DAMNUM. E esta feita fica a cargo de “Only Loss”, totalmente voltada para o peso da uma perda, essa composição apresenta a resolução do título do trabalho. Aqui vai uma interpretação que fez total sentido para mim. O dano “emocional”, geralmente causado por algum tipo de luto, passa por 5 etapas.
1- a negação/isolamento: a introdução introspectiva e dolorida da música apresenta a vontade de não aceitar que algo tenha tomado tal proporção, junta-se a isso a vontade de se isolar;
2- a raiva: após um momento de isolamento, retratado pela parte clean da intro, os instrumentos e vocais brutais irrompem em ódio e dor. Retratando assim este momento.
3- a barganha: próximo ao refrão, ouvimos momentos de algo próximo a um êxtase quase divino, ali está esse processo. Onde se passa acreditar em algum tipo de cura milagrosa para essa ferida. Mas cuidado….
4- a depressão: após um breve momento de barganha, a depressão toma conta, como um inimigo silencioso mas altamente destruidor, os gritos desesperados representam essa mudança dolorosa e que muitas vezes causam danos permanentes.
5- a aceitação: depois da depressão, a pessoa que consegue externar todos seus sentimentos, suas dores, consegue encontrar uma resposta para tudo o que está passando. E próximo aos dois minutos finais do disco, conseguimos encontrar o equilíbrio entre a dor e a necessidade de se seguir em frente. Mesmo em meio a tudo isso, podemos encontrar uma luz, uma saída.
Os danos podem permanecer, mas somos nós que decidimos amadurecer com eles, ou nos retrair por medo dos mesmos. DAMNUM é o ‘masterpiece’ da carreira da banda, trabalhando excelentemente com a tenuidade da dor e da aceitação. Um compacto excelente que apresenta de forma maravilhosa o que o quinteto pode produzir. Com toda certeza, veremos mais discos maravilhosos pela frente.
Nota: 9,0
Integrantes:
- Greg Burgess (guitarra)
- Michael Stancel (guitarra)
- Riley McShane (vocais)
- Brandon Michael (baixo)
- Jeff Saltzman (bateria)
Faixas:
- 01. Bastards of the Earth
- 02. Of Beasts and Worms
- 03. Into Embers
- 04. To Carry My Grief Through Torpor and Silence
- 05. Vermin
- 06. Called Home
- 07. Blight
- 08. The Dopamine Void, Pt. I
- 09. The Dopamine Void, Pt. II
- 10. Saturnine
- 11. In Mourning
- 12. Only Loss
Redigido por: Yurian “Dollynho” Paiva